"Com dois meses de atraso, ela sabia, estava grávida. Alguns meses depois fez o ultrassom, era uma menina, depois de ter um menino, finalmente teria uma garota, que se chamaria Rafaela.
Quando nasceu o pai logo ouviu "-Agora que tem uma menina, preocupação em dobro hein?", "Vai ter que tomar cuidado com os garotos a rodeando" e a frase que ouviu quando o seu filho nasceu de "-Esse garoto vai ser forte e inteligente, vai conseguir subir muito na vida" deram espaços para "-Essa garota é linda, vai conseguir um bom marido e ser uma boa mãe".
Ao comprar roupas para sua filha, sua mãe sempre ouvia "-Nada de azul ou verde, compre rosa, para ela não ser confundida com um menino".
Os anos passaram e Rafaela foi crescendo, queria brincar com seu irmão de jogar bola e empinar pipa, mas sempre ouvia "-Isso não é coisa de menina". Ficava em casa, ganhando incontáveis bonecas para aprender desde cedo como era doce o "dom natural" da mulher para ser mãe. Seu irmão querendo agradá-la tirou um dia para brincar de boneca com ela, quando seu pai chegou do trabalho, acabou ganhando um sermão e uma surra, afinal boneca não era coisa de menino.
Com cinco anos ouviu seus pais brigando, estava na hora de entrar para escola, mas seu pai achava besteira, não queria assumir despesas desnecessárias, "-Sua filha não parece levar jeito para o estudo" disse em meios aos berros para sua mãe. Com muito esforço sua mãe encontrou um emprego para bancar os gastos com a educação da filha, mas nunca podendo falhar com os afazeres da casa, afinal, para seu marido, cuidar da casa é coisa de mulher.
Seu irmão, apenas três anos mais velho, ganhava presentes por tirar notas acima de 6, mas Rafaela quando tirava um 10, só ouvia do pai que deveria continuar tirando notas assim, pois não era mais que sua obrigação.
Com 13 anos seu irmão teve a primeira namorada, que seu pai aceitou sem nem pestanejar. Quando chegaram seus 13 anos, Rafaela teve seu primeiro amor, que era correspondido, embora ainda só se tratasse de um colega de sala que devolvia com a mesma intensidade seus sorrisos, quando tentou contar para seus pais, foi proibida de tocar nesse assunto novamente antes dos 18 anos, ainda não tinha idade para se apaixonar. O pai acabou fazendo sua transferência para outra escola, assim ficaria distante do garoto em questão.
Nessa época seu irmão já estava com 16 anos e em seu quinto relacionamento sério, fora as incontáveis traições que seu pai julgavam corretas, afinal "Homem é homem". Nesse mesmo ano, seu irmão aprendeu a dirigir, seus pais concordavam que homens tinham que aprender desde cedo a se virar. E Rafaela? Bem, ela com 16 anos aprendeu a cozinhar, lavar, passar e fazer todos os afazeres domésticos, afinal, sem esse aprendizado não conseguiria um bom marido.
Viu certa vez em uma revista um corte de cabelo da moda, que era bem curto e despojado, decidiu que cortaria igual, juntou algum dinheiro que havia sobrado do lanche da escola e foi para o cabeleireiro. Quando chegou em casa, se deparou com seu pai, após ter seu novo visual avaliado por aqueles olhos frios e distantes, levou um tapa no rosto e ouviu "-Filha minha não vai ficar parecendo lésbica, torce pra isso crescer rápido".
O cabelo cresceu e junto com ele Rafaela também crescia, com 17 anos, queria usar shorts curtos no verão, mas sempre ouvia que "-Mulher tem que se dar ao respeito", queria sair de noite com as amigas, assim como o irmão fazia desde os 15 com RG falso que seu próprio pai arrumou, mas sabia que a resposta seria a mesma.
Sua paixão por seu melhor amigo (do qual os pais nem poderiam imaginar a existência) também acabou crescendo, contou para seu irmão, que era o único da família que concordava em acoberta-la. Ele a aconselhou a viver sua própria vida e aproveitar esse romance, e foi isso que ela fez, os beijos escondidos logo deram espaço para um namoro mais sério. Quando finalmente fez seus 18 anos, contou para os pais, após levar mais um dos vários sermões, seu irmão interveio e como o filho predileto sempre teve razão, acabou conseguindo a autorização para que ela pudesse namorar.
Claro que com o namoro surgiram os familiares que cobravam o casamento, claramente preocupados que a menina perdesse a virgindade antes de subir ao altar.
Com 18 anos, entrou para a faculdade pública, sem repetir nenhum ano de escola e com notas excelentes, afinal queria orgulhar o pai, embora o irmão que tinha abandonado os estudos para trabalhar desse muito mais orgulho, afinal era homem e já ajudava a sustentar a casa.
Rafaela também queria trabalhar, mas seu pai nunca deixou, ela deveria apenas cuidar da casa, como uma "boa mulher".
Uma tarde teve que ir até a casa de uma amiga para fazer um trabalho da faculdade (somente após apresentar a amiga para os pais e provar que ela era membro de uma "boa e tradicional família", conseguiu autorização para isso), seu namorado não pode ir buscá-la e como ela não pode aprender a dirigir (seu pai sempre disse que "-Mulher no volante, perigo constante"), teve que fazer o caminho inteiro caminhando.
A distancia entre as casas era grande e na metade do caminho a tarde deu lugar para a escuridão da noite. Em certa altura Rafaela notou que estava sozinha na rua, virou uma esquina e se deparou com um grupo de rapazes alcoolizados, tentou dar meia volta antes que notassem sua presença, mas era tarde demais, um deles apontou para ela e todos vieram em sua direção.
Tentou pegar seu celular no bolso para pedir ajuda, mas lembrou que havia saído sem ele para não correr risco de assalto.
Foi cercada, agredida, assediada e suas roupas foram rasgadas, graças a um grupo que passava e resolveu ajudar não foi abusada sexualmente, mas o trauma era imenso. Chamaram a policia e os agressores fugiram, saíram impunes como em tantos outros casos. Rafaela não prestou queixa, tinha medo de ouvir ainda mais sermões do pai por estar sozinha na rua, mas as fofocas correram e logo ouviu dele "-Aposto que estava com roupa vulgar, que respondeu quando eles estavam apenas te elogiando" e pra completar ouviu da mãe "-Mas também, o que você queria tão tarde sozinha na rua hein querida?", nessa noite não conseguiu dormir, pois não parava de chorar lembrando seus momentos de terror pessoal.
Tempos passaram e o namoro ficou mais intimo, a primeira transa acabou acontecendo, no carro do namorado, sendo seguida pela segunda, terceira, quarta e assim em diante até perderem as contas.
E não foi a única conta que ela perdeu, não tomava anticoncepcional, pois os pais a proibiram de frequentar a ginecologista por medo do inicio da vida sexual. O namorado? Gostava de transar sem camisinha, falava que "-Não tem graça consumir bala embrulhada no papel". A menstruação? Três meses depois ainda não tinha vindo.
Aos 19 anos grávida, sem ter com quem falar da gravidez, fez o teste de farmácia e a confirmação foi um tapa na cara. O irmão tinha casado, estava morando com a esposa em outro estado, o único que sempre a apoiava tinha ido embora, ainda levando a vida de trair a esposa, que aceitava a traição e se fazia de desinformada.
Decidiu contar para o namorado , ele nem pensou duas vezes, disse que como era muito novo e homem, ainda não estava preparado para um bebê. Disse ainda, que ao contrário das mulheres, os homens não nascem com esse dom para cuidar de crianças.
Após um longo silencio ele chegou a conclusão mais rápida: "-Melhor abortar, antes que seus pais descubram". A conversa foi curta e direta, dentro daquele carro, depois daquele dia ele simplesmente sumiu e não atendia mais as ligações de Rafaela.
Ficou sozinha, abandonada e logo a barriga começou a crescer. Seu pai descobriu, o tapa no rosto só não doeu mais do que ouvir "Você vai sair da minha casa agora, não criei filha minha para ser vadia. Mulher direita, casa virgem".
Foi para a rua, abortar não era opção, sabia que os riscos para ela eram muito grandes, afinal o procedimento nem é legalizado, não morreria em uma clinica clandestina.
Uma amiga solteira que morava sozinha a acolheu, com sofrimento conseguiu um emprego depois que a criança nasceu, afinal o mercado de trabalho exige experiencia e por causa do seu pai, Rafaela jamais conseguiu trabalhar fora. O trabalho era de caixa em um pequeno mercadinho, enquanto trabalhava sua filha ficava na creche (mais uma menina no mundo, ela tinha medo do caminho que essa criança seguiria, só queria dar a vida que ela nunca teve).
Se formou na faculdade de direito (sim, essa era a faculdade que Rafaela cursava) e finalmente conseguiu um trabalho em um fórum, seu colega de turma da faculdade que tinha notas bem menores, exercia o mesmo cargo, mas por ser homem ganhava mais. Se peguntava todo dia onde estava o direito nisso.
Se apaixonou algumas vezes, mas eram constantes as pessoas que lhe falaram "-Só não vai colocar homem pra dentro da casa hein?! Se ele tentar alguma coisa com sua filha, não vai poder reclamar", como se por ser homem, o individuo não conseguisse controlar seu instinto, jamais conseguiria entender isso.
Hoje, quinze anos depois, seu irmão (divorciado atualmente) está visitando a nova casa de Rafaela. Ela é advogada e luta para que outras mulheres não passem pelo mesmo, sua filha é uma linda jovem que tem toda liberdade para pedir conselhos e viver.
E quem afinal é essa Rafaela? Bom, se você foi mulher, pelo menos uma vez já foi ela."
segunda-feira, 10 de outubro de 2016
Crônica: O nome dela é Rafaela
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Texto da Jess
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Pode me chamar de Jess. 20 anos, blogueira.
Fã de Game Of Thrones, Arctic Monkeys e Harry Potter.
Amante da escrita e leitora voraz.
Taubateana com sotaque mineiro, uai. Escritora de crônicas, resenhas e conselhos que tem dificuldade para seguir.
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